domingo, 27 de julho de 2008

Breve síntese dos 18 anos e meio vividos em Angola

PRELÚDIO - Vou tentar sintetizar os meus passos em Angola, mas acho que não consigo. Contudo começo por dizer que não sou retornado, mas sim refugiado, pois nunca cá estive no "Puto" antes de 1976. Sou europeu porque o meus antepassados o eram, mas sinto-me africano pelos 18,5 anos mais importantes da minha vida vividos em Angola.

Nasci em Moçâmedes, a 23-06-1957, no seio de uma família numerosa - éramos 7 irmãos (São,Lopo, Jorge, Kady (eu), Lena, Fernando e Marito) - lá está a história de não haver televisão, ou se calhar, a minha mãe levava a religiosidade muito a sério - cada gravidez, cada parto.

O meu pai, per si, também pertencia a uma prôle grande - 10 irmãos (Norberto, João Carlos - meu pai, Quim, Armando, Zézinho, Mário Alexandrino, Zita, Helder, Guida e Eduardo). Só para explicar que as famílias do meu pai e do meu avô iam crescendo de tal maneira que a minha irmã São é mais velha que o meu tio Eduardo :) :) :)

Nasci rico, pois o meu avô - João Duarte - mantinha com os filhos uma fábrica de farinhas e óleos de peixe e outros derivados, situada na Praia Amélia. Para além disso o meu avô tinha uma quantidade de casas que arrendava e construiu o prédio onde funcionava o Banco de Angola em Moçâmedes, Banco este, que lhe pagava também renda. Tudo isto, fábrica, numerosos edifícios, 3 traineiras de porte considerável, as moradias da família, lá ficou em Angola.

A MENINICE - Vivi em Moçâmedes de 1957 a 1961 e nesse tempo de "vacas gordas" o meu pai andava nas corridas de automóveis e nas "brincadeiras" com avionetas do Aero Clube de Moçâmedes e até chegou a ser proprietário de uma pequena avioneta - um Tiger Moth de "4 asas".Há cá muita gente de Angola, que se lembrarão desses áureos tempos.

TEMPO DA 1ª ESCOLA E DA GUERRA - Em 1961 fomos para o Ambriz e lá vivemos o "tempo da guerra". O meu pai sempre ligado aos aviões utilizava as duas avionetas Auster do Aero Clube do Ambriz (baptizados de "O Desejado" e o "Kaulza de Arriaga") e dava uma ajuda (muito elogiada, em carta, pelo Comando) aos militares na recolha e evacuação de feridos para os hospitais de Luanda e noutras necessidades que eles tinham. O Auster parecia um taxi aéreo, nunca parava! Em contrapartida também andei muito nos jipes Willy's e Jipões da tropa portuguesa e, albergámos na nossa casa muitos militares de patente alta e suas esposas pois a casa tinha imensos quartos - parecia uma pensão!!! O Ambriz era uma povoação pequeníssima mas tinha um Clube Social, um Hotel, uma bomba de gasolina e pasmem-se, uma piscina oceânica (com água salgada). As avionetas aterravam na avenida principal e o primeiro hangar chegou a ser ao lado da minha casa!!! Quando o meu pai dizia - vou sair - nós nunca sabíamos se ia na carrinha Chevrolet ou na avioneta Auster!!

A CAPITAL- Em 1964 fomos para Luanda. Estivemos lá até 1968.O meu pai trabalhava como contabilista na União Comercial de Automóveis (do Mota Veiga, que vendiam os Triumph e Land Rover), na Art Plastic (que faziam os reclames luminosos de Luanda) e ainda fazia uma perninha na contabilidade dos Cafés Palanca. E ainda lhe sobrava tempo para servir na FAV -Força Aérea Voluntária, como piloto, fazendo o que fazia com os aviões civis no Ambriz mas de uma forma mais militarizada. Lembro-me bem dos gelados do Baleizão, dos pregos do Pólo Norte, dos pirolitos dos "quitandeiros", da Luta Livre no Estádio dos Coqueiros, dos "karts" do Lobo da Costa, das corridas de carros na Fortaleza, do "conjunto"musical Os Brucutus e da minha Escola Secundária Emídio Navarro. Morámos no Bº Prenda, BºSalazar e Vila Alice.

O REGRESSO ÀS ORIGENS - De 1968 até 1970 estivemos de novo em Moçâmedes - "o regresso do filho pródigo à família". Em Moçâmedes frequentei a Barão de Moçâmedes que funcionava da EICIDH e andei também no Curso Comercial da EICIDH. Lembro-me bem do Parque Infantil (a Xica e o Kaitô), dos pastéis de nata que o pai do Tony e da Lini fazia na Oásis, da Praia das Miragens, de treinar hóquei no Benfica, das corridas de carrinhos de rolamentos na descida da EICIDH e de ir passear para as "Hortas" na Mini Honda do meu irmão Lopo, pois ainda não tinha "carta".Ainda me lembro dos gelados do Tico Tico, das corridas de Dinky e Corgi Toys de joelhos no chão, dos rebuçados Popular comprados no Café Avenida e mastigados na matiné do Cine Moçâmedes (cowboiadas e em barda), do Impala Cine, da Miss Angola Riquita Bauleth, das Festas do Mar - comboio Bébé, cabeçudos, cachorros quentes, das corridas de natação em mar em que participei, das corridas de carros na marginal e dos iô-iôs com um elástico comprido que comprávamos para acertar nas perninhas branquinhas das miúdas de Sá da Bandeira que iam às Festas do Mar a Moçâmedes.

ADOLESCÊNCIA INTERROMPIDA - De 1970 até 1976 estivemos em Porto Alexandre pois o meu pai foi convidado para encetar um projecto industrial no domínio da transformação de peixe - a Sial, ainda mais arrojado que o negócio da família que era do mesmo tipo. Terminei o meu Curso Comercial em Palex, assim como o meu irmão Jorge (fomos finalistas juntos). Ainda estive um ano lectivo em Sá da Bandeira a fazer o 1º ano do Complementar. Nesta terra fiz uma corrida de Mini Hondas. Depois tive de regressar a PAlex por causa do 25 de Abril e das confusões dos movimentos de libertação.Em Palex empreguei-me, primeiro no Pereira Simões e depois na Câmara Municipal. Lembro-me bem de Palex ainda sem central eléctrica - as fábricas é que davam electricidade às casas e, quando não havia fabricação, não havia luz. As Mini Hondas e outras motorizadas eram o meu forte nesta terra mas também me lembro de dos pic-nic no Fundão e das suas belas amêijoas, de estudar na ECBD, das aulas de EF no ringue do Parque Infantil, da bela praia, dos passeios pelo deserto e das grandes amizades da adolescência , de cantar num "conjunto" musical The Black Cloaks :) :) e ainda do primeiro namoro, quase platónico...

FUGA PARA A "SELVA" EUROPEIA - (com breve passagem pelo apartheid) - Janeiro de 1976, já quase não haviam amigos em Palex - todos se tinham ido embora, de carro, de barco ou de avião. As ruas de Palex, pejadas de mortos. O meu pai tinha que ziguezaguear para não os pisar. Era a caça ao homem. Nós que sempre acreditámos que ficaríamos, escorados nos dizeres do Saidi Mingas (assassinado pelo golpe nitista). O Saidi Mingas e o Kundi Paihama (que vivia em Palex e que era meu amigo) disseram ao meu pai - Sr Duarte, fique porque aqueles que saírem vão ter dificuldades em regressar. Infelizmente o Saidi e o Kundi não tinham razão. Hoje vai mais depressa para Angola um tuga que "não gosta de pretos", tal como os russos (e lá faz o sorriso amarelo para os explorar) do que um genuíno angolano como eu e vós leitores que amamos aquela terra.

Cronologia da "Fuga" de traineira e repatriamento de comboio, autocarro e avião - Janeiro de 1976 » Palex (dia 10) , Saco da Baleia (dia 11), Baía doa Tigres (dia 12), Cunene (dia 13), Walvis Bay (dias 14 a 23), Swakopmund (dia 23), Usakos (dia 24), Karibib (dia 24), Okahandja (dia 24), Whindoek (dia 24), Abidjan/Costa do Marfim (dia 24), Lisboa (capital da Selva, dia 25) .

PS1: ficam por contar os episódios inanarráveis da "Selva" e as catanas que tive de afiar para desbravar mato e sobreviver aqui no Puto, como se fosse um dos exploradores Serpa Pinto, Brito Capelo ou Robert Ivens quando se aventuraram no mato verdadeiro.

PS2: oportunamente ilustrarei alguns destes episódios angolanos neste blog .